De Carne e Osso
- Amanda de Urquidi Cimino
- 24 de mar. de 2019
- 8 min de leitura
Atualizado: 5 de mai. de 2019
Seguindo a tendência mundial de busca por saudabilidade, o brasileiro reduziu o consumo de três itens: açúcar refinado, refrigerantes e carne vermelha, segundo o levantamento da Kantar Worldpanel. Tanto a carne bovina, como frango e suína apresentaram queda de volume em 2018 na comparação com o ano anterior (Worldpanel, 2019).
Sabendo que duas das maiores empresas brasileiras possuem o mercado baseado no segmento cárneo, esse dado causa uma certa surpresa. Mas afinal, no país do churrasco, como é construída nossa relação com a carne?
O mercado cárneo
O Brasil é um dos mais importantes produtores de carne bovina no mundo. Só de consumo interno, em 2018, foram 31,4 Kg de carne bovina, 44,3 de carne de frango e 15,6 de carne suína por habitante (SECEX, 2019). Isso significa que, na média, você sozinho consumiria quase cem kilos de carne por ano. A produção cárnea brasileira, em 2018 foi de mais de 26.000 toneladas (SECEX, 2019), o equivalenteao peso de mais de 30.000 fuscas! Esse número decorre não apenas do consumo interno, mas das exportações, já que, em 2018, o Brasil representou cerca de 20% de todas as exportações bovinas do mundo (SECEX, 2019). É muita carne!
Apesar dos números gigantes, em 2016, o Brasil foi o país que apresentou maior queda no consumo de carne bovina em termos absolutos, seguido da Venezuela e Argentina, (FORMIGONI, 2017).
E se o mundo decidisse parar de comer carne? O impacto na economia do Brasil seria de perdas de mais de 1 bilhão de reais em exportações por ano (AQUINO, 2016). A criação é a única fonte de receita para cerca de 20 milhões de pessoas no mundo, segundo um relatório da Organização das Nações Unidas.
Mas afinal, por que estamos comendo menos carne?
Vegetarianos, Veganos, Flexitarianos
Em Abril de 2018, quase 30 milhões de brasileiros se identificaram como vegetarianos ou veganos (LONG, 2018). Muito fatores tem contribuido para essa mudança, como por exemplo, o aumento de fontes de proteínas alternativas às proteinas animais, tendência essa liderada basicamente pelos Millennials, nascidos em meados da década de 90 (Mintel, Meat and Poultry, 2018). Se pensarmos no grupo de amigos dos nossos pais, quando adolescentes, é quase impossível imaginar uma saída de sábado com hamburguer sem carne. A mudança é tão drástica que nada mais nada menos que o Mc Donald's acaba de anunciar o lançamento do Mc veggie, feito de queijo coalho.

A carne e a saúde
De acordo com a Mintel (2018), 25% dos consumidores associam o hábito de alimentação saudável com a redução de produtos de origem animal. Além disso, 63% dos consumidores têm interesse em produtos e ingredientes veganos/vegetarianos. Apesar disso, quase 1/5 dos entrevistados alegaram que atualmente a carne processada é mais saudável que no passado (Mintel, Meat and Poultry, 2018). Ainda assim, a associação entre o consumo de carne e saudabiliadade é controversa.

A carne é fraca
Eleições, corrupção, crise financeira, inflação, recalls, são muitos os fatores sociais que influenciaram no declínio do consumo da carne. Quase uma quarto da população alega reduzir o consumo de carne devido ao número de recalls no setor. Os consumidores, em geral, demonstram estar preocupados com a qualidade da carne que consomem e com a transparência da cadeia, já que em 2018 a Operação a Carne é Fraca revelou fraudes em análises. (Mintel, Meat and Poultry, 2018). Além disso, alguns jornais, como a Folha de São Paulo (2017), anunciaram a crise economica como causa de deiminuição de consumo de carnes.
De forma a combater essa imagem, as duas principais produtoras brasileiras, JBS e BRF, vêm anunciando medidas de transparência com o consumidor. A JBS, por exemplo, mostra em vídeo as condições higiênicas das fábricas com declaraçãos dos trabalhadores. A BRF anunciou no Fantástico a campanha onde mostra seu processo, além de promover a ação “Portas Abertas”, onde se pode questionar e solicitar explicações aos escândalos.
Mas e os bichinhos?
Outra preocupação que ocasiona o declínio do consumo de carne é o bem estar animal. Para isso, a indústria e pecuária tem desenvolvido alternativas e certificado alguns produtores com o selo de bem estar animal. Esses cuidados incluem os cinco intens de liberadade: Estar livre de fome e sede, estar livre de desconforto, estar livre de dor, ferimentos e doenças, ter liberdade para expressar seus comportamentos naturais da espécie e estar livre de medo e estresse (CERTIFIED_HUMANE_BRASIL). Queria eu um certificado desses!
Uma das pioneiras no estudo de bem estar animal foi Temple Grandin. A cientista desenvolveu técnicas para melhoria dos cuidados com o gado. Ela explica que, por ser autista, consegue entender melhor os animais e suas emoções. Hoje, ela tem pós-doutorado em veterinária e é especialista em neurociência, dando palestras no mundo inteiro para pecuaristas sobre como criar o gado, respeitando os animais. (GRANDIN, T.)
Responsabilidade Ambiental
A sustentabilidade é ainda pouco explorada em produtos alternativos à carne, apenas 4% da população que diminuiu o consumo de carne, o fazem por uma questão ambiental. Ainda assim, o governo tem lançado medidas que visam essa conscientização, como o programa “Escola Sustentável”, que visa o empoderamento de produtores locais, melhoria de saúde e um legado de sustentabilidade.
Para produzir 1 quilograma de carne bovina no Brasil são emitidos 335 Kg de CO2, equivalentes às emissões geradas ao dirigir-se um carro médio por 1.600 Km (Schmidinger, 2012), mais ou menos a distância entre Rio e Salvador. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que o setor pecuário é responsável por 14,5% das emissões de gases do efeito estufa globais oriundas de atividades humanas (GERBER & al, 2013).
Além disso, o Brasil tem sofrido extensivo desmatamento na região amazônica para a pecuária, aproximadamente 70% da terra desmatada da Amazônia é usada como pasto, e uma grande parte do restante é coberta por plantações cultivadas para produção de ração (FAO/ONU, 2006). Ou seja, se não consumissemos carne, sobraria espaço para plantar e a pressão sobre áreas preservadas, como a Amazônia diminuiria bastante. (AQUINO, 2016)
Outro impacto ambiental relevante relacionado ao consumo de carne é a água uma vez que são utilizados entre 10 e 20 mil litros de água para produzir apenas 1 Kg de carne bovina. (SABESP). Para que se tenha uma ideia, com essa quantidade média, poderíamos tomar mais de 100 banhos, incluindo a lavagem do cabelo. Segundo a ONU, o setor da pecuária é provavelmente a maior fonte setorial de poluição de água.

A carne na humanidade
Apesar da controvérsia, alguns estudiosos afirmam que foi o aumento no consumo de gordura e proteína animal, ocorrido há 2 milhões de anos, que possibilitou o crescimento do nosso cérebro poderoso até chegar ao tamanho atual. O cérebro humano consome um quinto da energia que ingerimos diariamente. Sem carne, que é uma fonte rica de calorias, naquela época, seria mais dificil alimentar esse órgao (AQUINO, 2016)
Além disso, a caça foi um dos maiores incentivos para que o homem aprendesse a se organizar socialmente. Afinal, para caçar um búfalo era preciso reunir o pessoal, dividir tarefas e estabelecer hierarquias (AQUINO, 2016).
A carne pode ter influenciado não só nossa evolução e sobrevivência, mas também nessa cultura. A palavra carnaval vem do latim carnem levare, que significa “abster-se, afastar-se da carne”, se referindo ao período de quarentena em que se evita o consumo de carne. A carne está associada ao que há de mais animal no ser humano, aos nossos instintos e pecados. Não à toa, diversas religiões têm restrições à este tipo de alimento. A carne de porco, por exemplo, é condenada por muitos cristãos e islãs, por ser considerada impura. No judaísmo é proibido misturar carne com leite (incluindo seus derivados), sendo assim, fica impossível aquele Cheese Tudo.
O porco também é impuro; embora tenha casco fendido, não rumina. Vocês não poderão comer a carne desses animais nem tocar em seus cadáveres. Deuteronômio 14:8
Apesar da associação da carne ao pecado, de acordo com a pesquisa conduzida pela Maple Leaf Foods quando apresentados à algumas opções, 43% dos canadenses afirmaram preferir bacon à sexo (foods, 2010). Tudo bem que não faz sentido ter que escolher entre sexo e bacon, mas ainda assim, se a vida fosse feita de escolhas, ao menos para os canadeneses, seria uma disputa acirrada.
No Brasil, a carne pode ter sido responsável pela mudança em nosso mapa. Por volta de 1732, o governo português decidiu ocupar a região Sul para evitar uma possível invasão espanhola. Doou fazendas em troca de ocupação. Foi nesses lugares que começou a criação extensiva do gado, permitindo a ocupação do sul. (AQUINO, 2016). O que quer dizer que, se nossos antepassados nunca tivessem comido carne, possivelmente o sul do Brasil teria sido ocupado pelos espanhóis, e, então perderíamos Erico Veríssimo e Getúlio Vargas em nossa história, além do gêmio e colorado, claro!
A consumo de carne foi tão importante para a história, que a salsicha foi responsável pela mudança de percurso de uma guerra entre a União Soviética e Finlândia. Durante a guerra da salsicha (sim, este é o nome da guerra), nos anos 30, os soldados russos pararam o ataque para comer as milhares de salsichas que estavam sendo cozinhadas pelos Filandeses (BLAKEMORE, 2017). Isso mesmo, a salsicha foi responsável por repelir o ataque em plena segunda guerra! Mas, falemos a verdade, se, em meio àquela friaca, meu inimigo colocasse milhares de panela de salsicha em frente, seria muito dificil a escolha entre segurar a arma ou preparar um dogão. Não julguemos.
E a importância da carne para nossa história não se atem apenas neste planeta. O Bacon foi o primeiro alimento a ser consumido pelo homem na lua. Tudo bem, não era bem o toresmo que você tem em mente, eram cubos de bacon congelados e desidratados, mas ainda assim, bacon. (BUTLER, 2009)
E o churrasquinho?
Apesar de diminuição de consumo de carne pelo brasileiro, nós, como humanidade, estamos a anos luz de renegar um corte de picanha.
A verdade é que o churrasco do sábado é parte da cultura brasileira, e não seria fácil para todos os seres de carne e osso, substituir a picanha pela beringela. Chico Mendes anuncia: O Churrasco está pronto, traga a a faca e a farinha. E ouse dizer à Sergio Reis que no churrasco com chimarrão o velho vai comer pão de alho.

O churrasco do pai ao som do sertanejo, o hambúrguer com os amigos, o pãozinho com presunto, a carne de panela da tia, a feijoada do domingo e até mesmo o torresminho da sexta a noite com o samba de fundo. A carne está presente em nossa vida social, em nossa economia, em nossa nutrição e cultura. E, apesar da diminuição de consumo, o brasileiro ainda está distante de substituir a carne pela tal da soja.
Ainda assim, aproveitemos esse momento para a conscientização do que estamos consumindo, do impacto econômico, nutricional, social e ecológico de cada pedacinho de bife que acompanha nosso diário arroz e feijão.
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Bibliografia
AQUINO, M. (2016, Outubro). Fôssemos vegetarianos? Super Interessante. Retrieved from https://super.abril.com.br/saude/fossemos-vegetarianos/
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LONG, C. (2018). The veganism is on rise in the home of "churrasco". The Brazilian Report. Retrieved from https://brazilian.report/society/2018/05/29/veganism-brazilian-meat/
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